sábado, 3 de abril de 2010

Um dia de sol em um inverno

Em um dia de inverno eu comi uma bergamota debaixo de uma figueira, nos arredores de um sítio ao qual fomos, meus pais e eu. Ia lá pelos fins da infância, já sentindo saudade da inebriante beleza da direta natureza das coisas, que nos próximos anos aos poucos ia-se perder em questionamentos sem fim, que me fariam recordar a tarde em que comi aquela bergamota.

Tinha-se dado o almoço. Era domingo e tínhamos comido um churrasco. O sol mais dourado do que claro desses dias de inverno deixava a grama com um verde profundo, pois não batia assim tão forte como o faz no verão, de modo que podia-se olhar com muita placidez para as coisas, sem desviar os olhos. Iam na grama seres minúsculos, dos quais me recordo as formigas e os grilos, pois o que mais vi não encontrei depois, na minha educação, nomes correspondentes. Penso se não alucinei, ou se, na tentativa de tornar o mundo mais coerente e íntimo, não terminei por pensar que alucinei, deixando de considerar coisas que talvez ainda não tenham nome, mas que estão por aí. Recordo-me de fitar a grama, as flores, os gerivás e as araucárias, que ali abundavam. Hoje posso dizer que aquele céu de inverno era cor azul cobalto, o verde dos gerivás era verde-amarelado, enquanto das araucárias era verde-floresta. Porém, à época, só posso dizer que tudo aquilo era agradável, e que ir comer uma bergamota na sombra da figueira lá no alto da colina era a coisa mais inexorável que se possa imaginar, era uma coisa que ilustra a própria definição da palavra “inexorável”, de tão certo que era o ato. Se eu vier a escrever que toda essa cena, de alguma forma, dava sentido ao meu ser, saiba que não estarei sendo verdadeiro, porque um segundo vinha depois do outro, sem um porquê, sem eu precisar me certificar, pelas minhas emoções, que sou sensível e posso admirar e filosofar sobre o mundo. Apenas almocei, vi meus pais e seu casal de amigos irem sestear, olhei a natureza e me retirei para comer minha bergamota.

Lembrando-me daquele dia, fica-me na memória a imagem da figueira, que eu contemplava, escorado no seu tronco, com meus cabelos balançando com o vento que também sacudia levemente os ramos pendentes daquela árvore. Agora, aqui estou eu, o ser que viveu aquele dia, que viu aquela figueira, e que agora relembra, com suas ideias de homem adulto, tudo o que se passou naquela tarde de inverno. Termino por me perguntar: “está ainda lá aquela figueira?”. Imagino-a no alto da colina, recebendo os últimos raios de um pôr-do-sol, com uma sombra a perder-se de vista. Imagino com um olhar humano algo que nesse momento o olho não vê. Dói-me a sensação que dá de ver o vento brincar com aquelas folhas, de ver os pássaros ali se aninharem, pois fico a pensar que são tudo emoções e percepções humanas. O que há entre mim e a natureza? Entre o que sinto e o indefinido que me rodeia e no qual vivo?

Primeiro, vivia tudo com inocência e naturalidade. Após, encantava-me com os sentimentos profundos transmitidos pelo universo. Agora, desdenho minhas emoções, como inúteis diante da distância entre meu espírito e tudo o mais que há.

A figueira pode ter sido derrubada por alguém. Assim, ela certamente não estaria mais lá, todos haveríamos de concordar, pois da maldade humana ninguém dúvida. Contudo, não sendo esse o seu fim, como podemos ter a certeza de que lá está ela, derramando em todo arredor seus verdejantes ramos, quase tocando a terra de onde surgiu, como alguém querendo reencontrar suas origens? Como saber que lá cantam os pássaros aquele som que tanto encanta? Parece bobagem, e talvez seja mesmo, mas a sensação da profunda distância que as infinitas possibilidades da existência colocam entre mim e a figueira acusa que não é tanto devaneio pensar nisso. Vi-a na infância, agora vejo-a em memória, mas, eu existindo, e exisitindo a figueira, quem pode atestar sobre a verdadeira face da árvore? Se nem eu sei bem o que sou e o que penso, como posso eu definir uma figueira e uma natureza? Certamente, entre o que percebo e o universo, há tudo.

Não sei. Não sei. Não sei. Tudo é dúvida. Apenas penduro-me por um tênue galho de certeza (quando penso tê-la) a um tronco que não sei o que significa, ou mesmo se existe. Talvez todos sejamos incertos, como galhos quebrados de um tronco que nunca vimos, caindo em direção a algo que não sabemos, e vamos caindo, devagar, contemplando o que há ao redor e pensando sobre essas coisas da vida. Depois da queda, quem sabe, germinaremos, e voltaremos a quebrar e cair. Quem sabe. É tudo dúvida. Mas que seria eu se não especulasse? Se todas as possibilidades existem, por que não procurá-las? Sinto que a irrelevância e o absurdo da existência me deixam pensar sem culpa, sem regras. Deixo-me à vontade para olhar a figueira, para recordá-la, para relembrar o canto dos pássaros, sabendo que em algum ponto de tudo o que há no universo, está aquela tarde muito clara e limpa sob os ramos da figueira. Se o universo existe e me inclui, em algum lugar meus sentimentos são verdadeiros, e, diante do indefinido infinito, meus sentimentos, e o próprio universo, podem ser qualquer coisa.

“ (...) Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando (...)”

Fernando Pessoa, heterônimo Álvaro de Campos, Tabacaria