terça-feira, 27 de setembro de 2011

A distância entre sentir e pensar. A distância da saudade.


“O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente...”
Autopsicografia, Fernando Pessoa

Por muito tempo passei meus olhos sobre esse trecho desse poema pensando entendê-lo. Hoje, penso que não compreendia-o profundamente. O que é a dor do poeta? Por que fingi-la?
A dor e a expressão dessa dor. O sentimento e a expressão do sentimento. São dois extremos separados pelo nebuloso e encantador universo das emoções. Talvez a subjetividade de um sofrimento ou de um amor seja tão esmagadora frente à sua racionalização que o poeta termine por se sentir um fingidor, tal como Fernando Pessoa nos conta. Por mais aguçada que seja nossa percepção artística e nossa criatividade, estamos sempre correndo atrás do coração, tentando reproduzir para nós mesmos a avalanche sentimental que ocorre nas quase impenetráveis cordilheiras do nosso espírito. Mas, no fim, o fingimento do poeta nasce da mais pura e genuína emoção. Nasce do amor, da dor, da saudade. Nasce da sensação de ter tudo para dizer e não conseguir falar tudo o que se gostaria e tudo o que se sente. Não é um fingimento propriamente dito. Antes, é tentativa de aproximação com o nosso íntimo. Porém, que nunca se dá da forma mais clara possível, sem deixar dúvidas racionais. No fim é isso: estamos apenas racionalizando o que dentro de nós se dá de maneira totalmente irracional.
Hoje, eu penso na saudade. Ah, a saudade... Bem inestimável da língua portuguesa. Mas o que é a palavra escrita e o significado dela? Não, não falo sobre o que está no dicionário da língua culta. Falo do dicionário da vida. E a diferença entre esses dois nos remete àquela separação entre intenção e gesto, entre sentir e escrever. O que realmente significa sentir saudade? Para algumas pessoas há um momento na vida em que as palavras trazem seus próprios insights. De repente, algumas letras ordenadas de forma a produzir um som reconhecível em um dado meio cultural tocam nosso espírito como se fossem materializações dos nossos sentimentos. Assim me senti quando percebi estar com saudade. Genuína saudade. Essa palavra, de alguma forma, conseguiu traduzir meu amor, minha dor e uma sensação de vazio e de ausência que permeava todo o meu ser. Fiquei orgulhoso de trazer essa palavra para dentro de mim, como coisa íntima minha. Conheço há tanto tempo essas letras dispostas dessa forma, mas pela primeira vez vi além delas. Claro, só ela não preenche o quadro de tudo o que se passa em mim. Há muito espaço em branco nesse quadro. Um vazio ativo, em que tudo acontece, mas que não consegue encontrar meio de ser exposto. Contudo, entender a palavra “saudade” me ajudou a entender o que se passa. Saudade vai muito além do sentir falta. Saudade nos remete ao passado, trazendo as mais amáveis lembranças. Saudade nos lança para planos futuros, para momentos em que essa dor não nos tocará mais. Saudade traz medo de não ter mais por quem sentir toda essa saudade, o que nos traz toda a dor desse sentimento. Saudade faz a vida valer a pena. Saudade faz a vida ser intensa. Essa palavra traz amor, vazio, solidão, bem-querer, medo de perda e faz o tempo passar devagar. Pra quem fica, saudade dói e a distância é maior. Pra quem vai, eu não digo nada, porque saudade é sentimento, e sentimento é coisa pessoal.
E, escrevendo isso, talvez eu me sinta um fingidor, como o Fernando Pessoa. Não por estar dissimulando sentimentos. Não, pelo contrário até! Talvez eu seja um fingidor apenas porque estou terminando esse texto e sinto que não consegui passar quase nada da imensa saudade que sinto. Mas ela existe! Minha saudade é tudo isso e muito mais. Minha saudade mora longe, mas vive intensamente dentro de mim. Minha saudade tem endereço. Mora em Sevilla.