domingo, 9 de outubro de 2011

Noite para Sorrir e Chorar



Hoje a noite é tão agradável que penso em escrever sobre ela. Dia de primavera, sol convidativo, vento fresco, nuvens carregadas se preparando de mansinho e, então, uma chuva muito calma, só pra limpar o domingo. E, agora, a noite. Silenciosa, misteriosa. Tudo como se estivesse pra acontecer uma grande revelação, mas tudo permanece suspenso em dúvida, serena dúvida. Abro as janelas, deixo a escuridão entrar. Do som, como que vagando ao acaso pelo vazio do universo, vem o violão e a voz de Leonard Cohen. O ventilador roda cansado, parecendo afetado pelo calor.

Antes estava caminhando e pensei mais sentindo do que propriamente pensando: o que é uma noite e o que é uma noite? Nem sempre é igual para mim e pra cada um é sempre tão diferente. Pela cidade, nos edifícios brilham luzes de televisão pelas janelas que vislumbro da rua deserta. O final de semana acabou – será que os sonhos se realizaram? Repito: o que é uma noite e o que é uma noite? Passo por alguém que, como eu, parece levado somente por esse vento que sopra tão profeticamente, e penso: como está sendo essa noite para esse aí? Olho para uma casa de jardim bem cuidado, com casinha de cachorro e gnomos de jardim (se fosse Natal estaria ela certamente cintilando de luzes e com o presépio bem aprontado) e penso: como está sendo essa noite para esses que vivem ali? Passo por um mendigo dormindo no banco da praça, deitado sobre papelões que outrora guardaram uma cobiçada televisão de polegadas a perder de vista e que agora dão abrigo a esse corpo tão pouco desejado e em que polegadas de nada servem para medir o sofrimento e a miséria, passo por ele e penso: como está sendo a noite para esse aí? E para mim: como está sendo essa noite? Está ventando, está quente e a cidade está vazia. Mas e aí? Como eu disse: o que é uma noite e o que é uma noite?

Sinto pelo ar a tristeza que a essas horas aparece no domingo. Não, não estou triste – pelo menos não com a angústia dominical. Apenas estou sentindo que se faz presente por aí, em alguns muitos corações, a melancolia que vem num domingo em que choveu e em que o tempo é abafado. A semana deve ter sido tão árdua pra tanta gente. De segunda à sexta o “eu” de cada um deve ter sido tão esquecido em prol dos deveres que às vezes nem sabemos por que temos – sei disso, pois muitas vezes já me senti assim. Tudo aquilo que o espírito anseia, toda a solução dos questionamentos, toda a distância entre o “eu” que atua e entre o “eu” que é, tudo é jogado para o final de semana, esperando uma redenção. Aí vem a noite de domingo, sempre implacável, peguntando: o que você fez com a sua vida? E é a vergonha e a falta de esperança em si que domina a audiência dos programas de auditório. Assim, o Fantástico termina sendo o “show da vida”. O show está na televisão, fora de nós. Somos espectadores de uma realidade em que gostaríamos de sentirmos como nossa - não como posse, mas como companheira.

Sei ser profeta, sei do seu destino e de todos os demais: sei que morrerá. Admitamos: há alguma mentira nisso? É mais certa a morte do que o amor de mãe. Só que com tanta melancolia no domingo, com tanto “show da vida” na televisão, com tantas esperanças de satisfação do ego na internet, a morte, tão amiga da realidade, vira a “tragédia da vida”, só que essa não aparece só no domingo à noite. Vem a qualquer hora. O pior é que nisso ainda me sinto enclausurado. Não pense que tenho o privilégio de aceitar o final do meu ser. Não é fácil mesmo, mas é por isso que caminho nessa noite, sendo carregado pelo vento, tão real como esse calor que me faz suar e desejar um banho de cachoeira com a mulher que eu amo – bem melhor que desejar um ar condicionado, né? É por isso que caminho tanto. É por isso que sinto amor e saudade. É por isso que sofro até chorar aquilo que penso ser a última gota – mas sempre vem mais.

E, caminhando, vejo essas pessoas, essas ruas vazias, essas casas tão arrumadas por fora, esses edifícios recheados de angústia. Como serão as outras pessoas? Eu queria saber. Sei muito bem que não sou o único apavorado com o fato de viver e de existir – pelo contrário, meus questionamentos podem ser até pueris para alguns, mas são meus questionamentos. Eu queria encontrar mais companheiros nessa caminhada noturna. Mas a cidade está vazia. Todos recolhidos em seus apartamentos. Alguns recolhidos conscientes de si; muitos recolhidos ausentes de si. Já deu pra entender o porquê da minha dúvida: o que é uma noite e o que é uma noite? Ou então, do mesmo modo: o que sou eu e o que são os outros? Repito: por isso caminho. Por isso amo a implacável pergunta das noites de domingo: como anda a sua vida, meu amigo?

Agora estou em casa, curtindo meus próprios devaneios. Há prazer em ter dúvida. Há até um certo orgulho em ter confiança no acaso. Gostaria de sempre ser assim, mas não se engane, porque minha tristeza é grande. Só que acho que é tristeza minha, tristeza amiga, posso dizer. Até desesperadora, às vezes, mas amiga, sim! Assim, encanto-me com o ventilador fadigado, com o Leonard Cohen – tão sentimental -, com a minha própria vida incerta, com a minha morte certa. Encanto-me por estar apaixonado por uma mulher, amando-a por inteiro, como pedia o Vinícius de Moraes. Nessas horas me dou conta que isso sou eu e esse é o universo. Nessa noite tão agradável vejo minha vida, meu amor, meu sofrimento e minha morte.