terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Caminhando por aí

Sair à rua para caminhar, com ou sem finalidade, indo à faculdade, ao supermercado ou a lugar nenhum. Sempre fizemos isso ao longo da nossa história. Primeiro, caminhávamos atrás de alimentos ou até mesmo corríamos fugindo de predadores. Depois, caminhávamos cuidando da terra, buscando materiais para construirmos nossos monumentos e, às vezes, fazendo guerras. O tempo passou, e aí já andávamos seguindo um messias – alguns para venerá-lo e outros para matá-lo -, enquanto outros simplesmente caminhavam. Nossa história seguiu, e já caminhávamos entre feudos, sob ignorâncias, medos, maldições e doenças. Porém, alguns iam por outros caminhos, e nos fizeram andar por cidades prósperas, com novas idéias e sob menos controle. Mais alguns anos passaram, e aí homens de mundos distantes se encontravam, homens separados por oceanos, que tinham em comum, entre algumas coisas, o fato de caminharem pelos mais variados motivos. Infelizmente, a essa época muito andou-se lutando, dando uma finalidade mórbida ao universal ato de caminhar. Todavia, o mundo seguiu, e continuamos a andar por aí. Fomos às universidades, às igrejas, às fábricas, aos amigos, às montanhas, aos restaurantes, aos festivais musicais, às bibliotecas, ao museus, aos parques. Caminhamos pelo fundo do mar, pelo espaço e até mesmo pela lua. E é este mesmo caminhar que usamos para ir comprar um picolé no mercadinho da esquina. Desde que somos bípedes, sobre dois calejados pés sempre andamos. E quanta coisa passa pela nossa cabeça com um simples caminhar.
Quando escrevo isso, vem-me à mente o livro “Cem Dias Entre Céu e Mar”, do Amyr Klink, o primeiro homem a cruzar a remo o oceano atlântico. Simplesmente remar, ir adiante, por alguma coisa que nos impele, alguma coisa imprecisa que não definimos, mas que, sentimos, é algo muito importante do nosso ser. Por isso, falar que o homem primitivo andava somente atrás de abrigo e alimento é certamente uma atitude reducionista, pois estamos assim negligenciando nossa própria natureza, que é a de ir atrás de algo, indefinido, mas que não nos deixa parados. Quando penso sobre essa sensação indecifrável que chama à aventura, lembro-me de ler no livro “Ensaio Sobre a Cegueira”, do José Saramago, um trecho que fala sobre “uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”. Assim, caminhando, remando, simplesmente saindo do lugar e vivendo guiado por um foco de luz indefinido, vacilante, mas perfeitamente perceptível, talvez seja esse o nosso modo de irmos de encontro a algo que imaginamos e sentimos ser o nosso próprio ser. Aliás, existe uma palavra que seja sinônimo para “ser” no sentido que estamos falando aqui? Olho no dicionário e vejo “consistir” como uma boa alternativa, mas incompleta, afinal quando eu falo sobre algo que “constitui o meu ser”, pareço estar me referindo apenas a uma parte de um todo, e não ao meu ser completo. Não, não me parece haver um sinônimo para “ser”. Isso indubitavelmente tem muitas implicações.
Nossa personalidade, diferentemente de algumas palavras, não pode ser substituída por outra sem perda de sentido. Por isso acho que a palavra “ser” no que se refere àquilo que somos naturalmente não encontra uma correspondente idêntica, de forma que qualquer substituição que por ventura venhamos a executar acabará distorcendo o produto final daquilo que desejamos expressar.
Agora, vamos supor que aquilo que somos fosse expressado por uma outra palavra, como, por exemplo, o nexo de contradição “mas”. Os nexos encontram equivalentes perfeitos, e essa palavra pode ser substituída por “porém”, “contudo”, “todavia” e “entretanto”. “Mas” parece-nos pueril, simples demais, sendo que até uma criança em alfabetização sabe usá-lo. Enquanto isso, “todavia” é um pouco mais rebuscado, começando a aparecer nas redações do ensino médio. Assim, se somos “mas”, podemos invejar quem é “todavia”, e assim buscamos ser um nexo menos comum e aparentemente mais respeitado. Usa-se esse recurso para escrever textos, buscando nexos variados e sinônimos ou expressões diferentes para enriquecer o texto. Porém, esse tema de buscar ser um sinônimo melhor não parece restrito à redação de textos. O ser humano parece pensar que existem alternativas que se encaixam perfeitamente no seu não muito bem-visto jeito de levar a vida. Quando digo não muito bem-visto, refiro-me à insatisfação com a própria vida, e quando falo sobre buscar sinônimos perfeitos, falo em buscar maneiras de se viver fora de si, maneiras não familiares a nós, mas bastante desejadas. Contudo, não somos um nexo, somos algo único, como a palavra “ser”. Negar a própria natureza buscando um sinônimo perfeito para algo que sequer encontra equivalente é como desarranjar essa palavra, tornando-a um anagrama, do qual podemos fazer surgir as palavras “rés” ou “rês”. A primeira significa “raso”; a segunda, denota qualquer animal quadrúpede que usamos na nossa alimentação. Claramente, isso encaixa-se perfeitamente a essa discussão. Buscando uma maneira de viver não-própria, não familiar à nossa própria história, é possível estabelecer um vínculo profundo com esse ser estranho? Logo, tornamo-nos rasos. É possível ser criativo ou original agindo de forma incongruente àquilo que somos? Assim, voltamos a engatinhar sobre quatro patas, servindo para qualquer interesse que não o nosso próprio, ou seja, tornamo-nos uma rês.
E o que pode ser mais humano do que caminhar e ir atrás do próprio ser? Assim caminhamos, de devaneios sobre o ato de andar ao longo da história até a busca e fuga do ser vista à luz da língua portuguesa. Sem uma linha perfeitamente traçada e uma introdução delineando todo o tema abordado fomos adiante, rumo a qualquer coisa, simplesmente andando entre palavras e pensamentos. Andar sem rumo ou ideal e pensar com associações livres parece, a mim, algo que se aproxima muito da liberdade humana.

Um comentário:

  1. Rique! Texto super denso, super bem escrito.

    Cara, acho que os ideais de ego do Freud, o que tu metaforiza com os sinônimos perfeitos, tem mesmo mudado sua conotação. O que lá no final do século XIX era um deus, um pai, uma mãe, um tio, hoje é extrapolado a múltiplos determinados padrões de perfeição - que nossos pais e outras figuras importantes também são submetidos - e nos deixam em uma busca, só pela busca, em um caminhar, utilizando tuas palavras, que não tem a liberdade da livre associação, mas repressão a ponto de focalizarmo-nos obsessivamente em um objetivo por vezes distante demais.

    Sempre houve repressão. Hoje talvez ela só ocorra de forma diferente. Mas, lendo o teu texto, fiquei pensando se esses padrões de perfeição não vem se intensificando (pela tevê, pela internet) e criando uma angústia humana maior. Com a tecnologia hoje, temos acesso facilmente à pessoas mais belas, mais brilhantes, mais ágeis, mais criativas... E essas mesmas pessoas sofrem a distorção de estarem do outro lado sob dois principais fenômenos: 1) a distorção feita por quem escreve os textos, monta os vídeos sobre elas, 2) a distorção feita por como as percebemos (nossas expectativas vs. nossa capacidade de entender a humanidade, com positividades e negatividades, coisas que muitas vezes se misturam sem nos darmos conta!).

    E, com isso, chegamos ao paradoxo do superego - sendo os ideais de ego componentes do superego, enquanto, no fim do século XIX, sentíamos culpa por não conseguirmos ser puros a ponto de não pensar naqueles seios exuberantes vistos durante o dia, sentimos hoje culpa por não sermos tão bons a ponto de ter todos esses seios à nossa disposição.

    Conversamos mais sobre isso pessoalmente e elaboramos isso melhor.

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