terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Vento das Onze

O relógio vai se aproximando da meia noite e a rua já está completamente silenciosa – de barulhos humanos. Apenas o vento quente que sopra a essas horas do dia faz as folhas das árvores farfalharem. Eu, sozinho, deitado em meu sofá, apenas com um abajur de luz amarela aceso, lentamente absorvendo um encantador vinho tinto enquanto sinto o regozijo mais do que justo de quem acabou de ouvir “Rhapsody in Blue”, de George Gershwin, e sentiu a música em sua plenitude. Agora, o silêncio – da alma. O barulho do vento só empurra a mente cotidiana para mais longe, não sendo exatamente um som em si. Antes, apenas suspende o dia-a-dia ordinário, varrendo-o para um lugar distante, fazendo brotar em mim a serenidade de um espírito vazio e cheio de contemplação por esse momento nessa noite calma.
De repente, uma pergunta: como foi o primeiro vento? Em que planície, montanha ou deserto ocorreu? O que mudou? Já existiam planícies, montanhas ou desertos quando o primeiro vento soprou? Já havia algo para ser mudado?
Sinto um peso no peito. Que pergunta simples, triste e, ao mesmo tempo, maravilhosa! Simples pelo vento que sempre vem, triste pela solidão de soprar no vazio e maravilhosa por levar tudo ao desconhecido. Não sei as respostas para tais perguntas, mas, estando com a mente suspensa nesta noite incerta, ofereço-me o direito da imaginação.
Não consigo definir exatamente quem sou, o que penso e o que virei a ser. Porém, poder imaginar como foi o primeiro vento faz com que essas perguntas não tenham muita importância. Sinto que estou aqui deitado nessa noite de verão pelo mesmo motivo que o primeiro vento soprou: para ir até qualquer coisa. Essa incerteza, que pode ser chamada de liberdade, deixa-me imaginar como foi o primeiro vento, e deixa-me ficar tranquilo por não ter uma resposta sobre qual é o meu caminho.
Não sei como essa noite vai terminar. Por hora, estou apenas deitado. E assim vou ficar mais um pouquinho. A maior verdade sobre mim é que não há verdade dita ou pensada sobre mim. E, por vezes, eu mesmo tento alguma definição ao meu respeito, mas então vejo que isso é puro medo. Nesses momentos, estou apenas tentando ser alguma coisa qualquer quando me deparo com as infinitas possibilidades de ser e de sentir qualquer coisa, tentando ser algo estático, definido e eterno, que ilusoriamente me pouparia da angústia e do amor absurdamente grandiosos que permeiam o universo. E, quando estou deitado, sereno e em paz, sinto-me completo não sendo necessariamente alguma coisa que eu penso ser. Sinto-me capaz para ser levado para qualquer lugar.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Fluxo


Escrevi o texto abaixo num momento de muito bem estar interior, num momento em que não tinha nada pra reclamar. Então, eu escrevi qualquer coisa para ver o que iria acontecer. Acabei falando sobre o fluxo das emoções por um método de fluxo de pensamento. Então, às vezes há uma mudança um pouco brusca de abordagem de um parágrafo para o outro (afinal, o pensamento não é linear). Espero que, pelo menos, seja compreensível...
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E quando não se tem nada a dizer? E quando tudo parece resolvido?

A tristeza, a solidão, a indignação e, sobretudo, a subjetividade são quem suportam, muitas vezes, a criação artística. Não são sentimentos desesperadores, mas poderiam sê-lo se não fossem extravasados pela literatura ou pela música, por exemplo. Expô-los misturados à arte torna-os contemplativos e naturais, à medida que a internalização dessas questões pode trazer o isolamento, que consigo traz a paranoia e a ausência de resolução desses sentimentos.
Mas quem sente essas coisas, por certos momentos também se sente feliz, completo e satisfeito até com as pequenas coisas da vida. Sentir-se triste ou feliz em um campo da vida tem um efeito dominó em todo o resto, de forma que não é incomum convivermos ou com o desamparo ou com a mais completa satisfação e segurança na própria vida. Se tudo está complicado e tende-se ao isolamento, o refúgio artístico nos liga novamente ao mundo e à segurança do próprio ser. Se tudo está bem, parece que nos inclinamos a simplesmente ouvir um bom som, tomar um vinho apreciável e se deliciar com tudo o que está ao redor. A vida flutua entre esses dois estados de espírito, de forma tão natural como um pescador que sobe o rio para pescar e que naturalmente deverá descer a correnteza para reencontrar sua casa e sua família. Porém, esse pescador pode sofrer um acidente de percurso. Por exemplo, e se o barco virar?
Às vezes, ficamos enclausurados em algum tipo de humor. A tristeza nos prende contra a vontade. Da (suposta) felicidade não queremos fugir. Mas por que coloco sob suspeita a mais convicta sensação de bem estar? Justamente por muitas vezes felicidade não significar felicidade em si, mas, sim, antes significa abdicar do risco de ser plenamente feliz para não correr o risco de passar por algum momento de tristeza. Por isso, estar enclausurado na “felicidade” pode ser uma coisa pouco desejável. E, por isso também, levar porrada da vida algumas vezes não é de todo indesejável. Só quem não aceita o inevitável fluxo das emoções pode pensar que estou fazendo propaganda em favor de sentimentos de melancolia (quem sabe eu esteja sendo pago por uma indústria farmacêutica que faz remédios anti-depressivos...). Existe diagnóstico psiquiátrico pra depressão. Às vezes, eu acho que deveria existir diagnóstico também para aqueles que dizem que são sempre felizes e que tudo é sempre perfeito em suas vidas.
Fernando Pessoa, ao escrever “Poema em Linha Reta”, iniciou o poema da seguinte forma:

“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campões em tudo.”

Mas o que define alguém como “campeão”? Admiração, sucesso profissional, riqueza, uma mulher linda? Não cabe julgar os caminhos da felicidade de cada um, mas, no geral, buscamos, através dos mais variados meios, uma sensação de plenitude, uma sensação que se aproxime daquilo que vagamente definimos como felicidade. Então, se o que, no final, buscamos é um sentimento, acho que o maior campeão é aquele que é minimamente sincero e conhece pelo menos um pouco os misteriosos caminhos das próprias emoções. Por isso, para mim, o campeão verdadeiro é o Fernando Pessoa, que, a despeito de tanta porrada, escreveu “Poema em Linha Reta”, entre tantos outros.
Tem um ditado alemão, muito duro até, que diz o seguinte:

“Quanto mais vazia a carroça, maior é o barulho”.

Precisa dizer mais alguma coisa? Sim, as cordas vocais de quem criou esse ditado devem ter esquecido como se faz o som da palavra “amor”, mas obviamente quem faz muita questão de ser percebido e de ter sua suposta felicidade anunciada aos quatro ventos seguramente tem pouca intimidade com as bases que fundamentam essa emoção.
A questão que se impõe é se vale a pena corrermos o risco de conviver com a melancolia ou se a estabilidade (acho que, neste caso, é um termo melhor do que “felicidade”) deve ser mantida para evitarmos a tristeza? Acho que quem lê isso pode ter a sensação de ter respostas óbvias para essa questão (e acho que para os dois lados). Para alguns, todo sentimento de infelicidade é primariamente inadequado; para outros, a tristeza é um caminho natural para quem persegue o bem estar de espírito.
Para mim, fugir das “porradas” da vida não implica em abandonar o sofrimento. Quem tenta isso, penso eu, torna-se menos íntimo de si. Apesar de buscar a felicidade, não acho que fugir da tristeza seja um bom meio para isso. Também deliberadamente buscar a melancolia não acho particularmente uma atitude louvável. Agora que termino de escrever isso aqui começa a tocar no som “No Expectations”, dos Rolling Stones.

“Take me to the station
And put me on a train
I've got no expectations
To pass through here again

Once I was a rich man and
Now I am so poor
But never in my sweet short life
Have I felt like this before...”

Acho que é um bom final. Sem muitos planos sólidos e determinantes da nossa felicidade. Apenas no subir e descer do pescador. Um dia o barco acaba inevitavelmente virando. Enquanto isso, a paisagem é rica, o rio é desconhecidamente profundo, as margens são incompletamente exploradas. Navegar de uma só forma exclui o rio da riqueza da paisagem.

http://www.youtube.com/results?search_query=no%20expectations&search=Search&sa=X&oi=spell&resnum=0&spell=1
Link para a música "No Expectations", dos Rolling Stones...