terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Poema da Distância



As coisas que sinto e as palavras que saem da boca
São como um céu com nuvens carregadas
Que sabia que precisava fazer chover
Mas passou de maneira silenciosa por esse lugar.
E as palavras certas
Como a chuva certa
Não jorram
E passam flutuando por entre a névoa dentro de mim.

Estou olhando o campo
E ao longe vejo uma árvore
Menos distante do que minha voz
Separada da minha alma.
Até a árvore posso caminhar
Sigo em linha reta pela pastagem
Mas para encontrar o que sinto
Não encontro trilha tão óbvia.

Não é um campo que me separa
Não são passos que preciso dar
A distância não pode ser medida
Não pode ser percorrida
Mas pode ser sentida.
E há um belo e profundo mundo ao redor
Pessoas, natureza, tristeza, amor
Tenho vontade de dizer o quanto gosto do que gosto
Tenho vontade de dizer o quanto me afeto pela tristeza
E por mais que tente chegar nessa ponto
A palavra sai sempre menor do que aquilo que ela representa.

Não são essas palavras aqui
Mais do que uma tentativa
De eu tentar me abrir plenamente para o que amo
De eu tentar chegar no porquê da minha angústia.
São incertas essas palavras
Tortas como esses galhos da árvore que antes eu contemplava de longe
E que agora vejo de muito perto.
Caminhei até aqui.
Pelo menos fica o testemunho escrito
Do meu caso de amor com tanta coisa nesse mundo
E da minha tristeza também (porque ela também há)
E das palavras que faltam pra eu dizer isso.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Vento das Onze

O relógio vai se aproximando da meia noite e a rua já está completamente silenciosa – de barulhos humanos. Apenas o vento quente que sopra a essas horas do dia faz as folhas das árvores farfalharem. Eu, sozinho, deitado em meu sofá, apenas com um abajur de luz amarela aceso, lentamente absorvendo um encantador vinho tinto enquanto sinto o regozijo mais do que justo de quem acabou de ouvir “Rhapsody in Blue”, de George Gershwin, e sentiu a música em sua plenitude. Agora, o silêncio – da alma. O barulho do vento só empurra a mente cotidiana para mais longe, não sendo exatamente um som em si. Antes, apenas suspende o dia-a-dia ordinário, varrendo-o para um lugar distante, fazendo brotar em mim a serenidade de um espírito vazio e cheio de contemplação por esse momento nessa noite calma.
De repente, uma pergunta: como foi o primeiro vento? Em que planície, montanha ou deserto ocorreu? O que mudou? Já existiam planícies, montanhas ou desertos quando o primeiro vento soprou? Já havia algo para ser mudado?
Sinto um peso no peito. Que pergunta simples, triste e, ao mesmo tempo, maravilhosa! Simples pelo vento que sempre vem, triste pela solidão de soprar no vazio e maravilhosa por levar tudo ao desconhecido. Não sei as respostas para tais perguntas, mas, estando com a mente suspensa nesta noite incerta, ofereço-me o direito da imaginação.
Não consigo definir exatamente quem sou, o que penso e o que virei a ser. Porém, poder imaginar como foi o primeiro vento faz com que essas perguntas não tenham muita importância. Sinto que estou aqui deitado nessa noite de verão pelo mesmo motivo que o primeiro vento soprou: para ir até qualquer coisa. Essa incerteza, que pode ser chamada de liberdade, deixa-me imaginar como foi o primeiro vento, e deixa-me ficar tranquilo por não ter uma resposta sobre qual é o meu caminho.
Não sei como essa noite vai terminar. Por hora, estou apenas deitado. E assim vou ficar mais um pouquinho. A maior verdade sobre mim é que não há verdade dita ou pensada sobre mim. E, por vezes, eu mesmo tento alguma definição ao meu respeito, mas então vejo que isso é puro medo. Nesses momentos, estou apenas tentando ser alguma coisa qualquer quando me deparo com as infinitas possibilidades de ser e de sentir qualquer coisa, tentando ser algo estático, definido e eterno, que ilusoriamente me pouparia da angústia e do amor absurdamente grandiosos que permeiam o universo. E, quando estou deitado, sereno e em paz, sinto-me completo não sendo necessariamente alguma coisa que eu penso ser. Sinto-me capaz para ser levado para qualquer lugar.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Fluxo


Escrevi o texto abaixo num momento de muito bem estar interior, num momento em que não tinha nada pra reclamar. Então, eu escrevi qualquer coisa para ver o que iria acontecer. Acabei falando sobre o fluxo das emoções por um método de fluxo de pensamento. Então, às vezes há uma mudança um pouco brusca de abordagem de um parágrafo para o outro (afinal, o pensamento não é linear). Espero que, pelo menos, seja compreensível...
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E quando não se tem nada a dizer? E quando tudo parece resolvido?

A tristeza, a solidão, a indignação e, sobretudo, a subjetividade são quem suportam, muitas vezes, a criação artística. Não são sentimentos desesperadores, mas poderiam sê-lo se não fossem extravasados pela literatura ou pela música, por exemplo. Expô-los misturados à arte torna-os contemplativos e naturais, à medida que a internalização dessas questões pode trazer o isolamento, que consigo traz a paranoia e a ausência de resolução desses sentimentos.
Mas quem sente essas coisas, por certos momentos também se sente feliz, completo e satisfeito até com as pequenas coisas da vida. Sentir-se triste ou feliz em um campo da vida tem um efeito dominó em todo o resto, de forma que não é incomum convivermos ou com o desamparo ou com a mais completa satisfação e segurança na própria vida. Se tudo está complicado e tende-se ao isolamento, o refúgio artístico nos liga novamente ao mundo e à segurança do próprio ser. Se tudo está bem, parece que nos inclinamos a simplesmente ouvir um bom som, tomar um vinho apreciável e se deliciar com tudo o que está ao redor. A vida flutua entre esses dois estados de espírito, de forma tão natural como um pescador que sobe o rio para pescar e que naturalmente deverá descer a correnteza para reencontrar sua casa e sua família. Porém, esse pescador pode sofrer um acidente de percurso. Por exemplo, e se o barco virar?
Às vezes, ficamos enclausurados em algum tipo de humor. A tristeza nos prende contra a vontade. Da (suposta) felicidade não queremos fugir. Mas por que coloco sob suspeita a mais convicta sensação de bem estar? Justamente por muitas vezes felicidade não significar felicidade em si, mas, sim, antes significa abdicar do risco de ser plenamente feliz para não correr o risco de passar por algum momento de tristeza. Por isso, estar enclausurado na “felicidade” pode ser uma coisa pouco desejável. E, por isso também, levar porrada da vida algumas vezes não é de todo indesejável. Só quem não aceita o inevitável fluxo das emoções pode pensar que estou fazendo propaganda em favor de sentimentos de melancolia (quem sabe eu esteja sendo pago por uma indústria farmacêutica que faz remédios anti-depressivos...). Existe diagnóstico psiquiátrico pra depressão. Às vezes, eu acho que deveria existir diagnóstico também para aqueles que dizem que são sempre felizes e que tudo é sempre perfeito em suas vidas.
Fernando Pessoa, ao escrever “Poema em Linha Reta”, iniciou o poema da seguinte forma:

“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campões em tudo.”

Mas o que define alguém como “campeão”? Admiração, sucesso profissional, riqueza, uma mulher linda? Não cabe julgar os caminhos da felicidade de cada um, mas, no geral, buscamos, através dos mais variados meios, uma sensação de plenitude, uma sensação que se aproxime daquilo que vagamente definimos como felicidade. Então, se o que, no final, buscamos é um sentimento, acho que o maior campeão é aquele que é minimamente sincero e conhece pelo menos um pouco os misteriosos caminhos das próprias emoções. Por isso, para mim, o campeão verdadeiro é o Fernando Pessoa, que, a despeito de tanta porrada, escreveu “Poema em Linha Reta”, entre tantos outros.
Tem um ditado alemão, muito duro até, que diz o seguinte:

“Quanto mais vazia a carroça, maior é o barulho”.

Precisa dizer mais alguma coisa? Sim, as cordas vocais de quem criou esse ditado devem ter esquecido como se faz o som da palavra “amor”, mas obviamente quem faz muita questão de ser percebido e de ter sua suposta felicidade anunciada aos quatro ventos seguramente tem pouca intimidade com as bases que fundamentam essa emoção.
A questão que se impõe é se vale a pena corrermos o risco de conviver com a melancolia ou se a estabilidade (acho que, neste caso, é um termo melhor do que “felicidade”) deve ser mantida para evitarmos a tristeza? Acho que quem lê isso pode ter a sensação de ter respostas óbvias para essa questão (e acho que para os dois lados). Para alguns, todo sentimento de infelicidade é primariamente inadequado; para outros, a tristeza é um caminho natural para quem persegue o bem estar de espírito.
Para mim, fugir das “porradas” da vida não implica em abandonar o sofrimento. Quem tenta isso, penso eu, torna-se menos íntimo de si. Apesar de buscar a felicidade, não acho que fugir da tristeza seja um bom meio para isso. Também deliberadamente buscar a melancolia não acho particularmente uma atitude louvável. Agora que termino de escrever isso aqui começa a tocar no som “No Expectations”, dos Rolling Stones.

“Take me to the station
And put me on a train
I've got no expectations
To pass through here again

Once I was a rich man and
Now I am so poor
But never in my sweet short life
Have I felt like this before...”

Acho que é um bom final. Sem muitos planos sólidos e determinantes da nossa felicidade. Apenas no subir e descer do pescador. Um dia o barco acaba inevitavelmente virando. Enquanto isso, a paisagem é rica, o rio é desconhecidamente profundo, as margens são incompletamente exploradas. Navegar de uma só forma exclui o rio da riqueza da paisagem.

http://www.youtube.com/results?search_query=no%20expectations&search=Search&sa=X&oi=spell&resnum=0&spell=1
Link para a música "No Expectations", dos Rolling Stones...

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010


No parque há um banco feito de madeira
Que fica de frente para um lago
Passa o tempo e a madeira gasta
E o que o banco ouve o tempo não muda

Vidas que vem e que vão
E o banco apenas dá conforto
A quem esteja precisando ficar no parque de frente para o lago
Vidas que vem e que vão
O banco envelhece
Mas as pessoas são sempre as mesmas

O banco não é mais sábio por estar sempre ali
Mesmo com madeira envelhecida
Porque o ser humano se repete
Cada vez que senta ali para refletir
São as mesmas histórias

Tudo se repete
Mas sempre é tão intenso
O banco ouve a mesma história
Como se fosse a primeira vez

Hoje eu penso num amor perdido
Hoje é a minha história de amor perdido
Quantas antes neste banco não houve?
Mas é a minha história
E o banco é tão confortável como nunca antes fora

Milagroso? Não.
Minha história é de amor perdido
Perdido
Mas o banco fez com que essa história
Ficasse mais humana
Contemplando o lago sentado na madeira
Sinto a vida acontecendo

Sopra um vento muito leve
Fim de tarde chegando
Levanto-me
Apaixonado, rompido, esmagado
Mas humano
E o tempo passa
Quantas vezes vou voltar a esse banco?
Quem sabe pra pensar no amor
No absurdo da existência
E voltarão outras pessoas
Com sentimentos tão sinceros quanto os meus
Pra sentar no mesmo banco
E ver esse lago tão calmo
Tão indiferente e tão necessário
Para quem vive nesse mundo apaixonadamente livre e sem sentido

sábado, 4 de dezembro de 2010

Ao som de Leonard Cohen, alguns pensamentos

O mundo pode ser aparentemente tão externo. Apenas coisas de fora conduzindo o humor pelo revolto mar das emoções. Sempre fui tão preocupado em aproveitar cada raio do sol, cada céu estrelado e cada forma de arte, que, de tão belos, poderiam, pensava eu não muito conscientemente, completar cada espaço da minha vida. Nem tanta beleza foi capaz de suplantar um ser que existe dentro de mim. A natureza continua bela, mas os olhos são os meus. Não há uma regra ou um jeito certo para uma música ser ouvida ou para um livro ser lido. Cada felicidade ou tristeza que sinto são, essencialmente, de minha propriedade. E é uma propriedade aberta, sem cercas ou guardas. Assim, sinto-me tão mais próximo do universo. E mais perto de mim. Conheço-me, pelo menos um pouco. Sinto-me feliz comigo mesmo, olhando pelo campo afora e sabendo que sou eu quem olha.

E o que há de mais pessoal e capaz de ser espalhado por aí afora do que o amor? Sendo tão ausente de mim mesmo e vendo o mundo como uma paisagem puramente externa e com sentimentos prontos para serem sentidos, perguntei-me: como podem haver tantas músicas falando de amor? Sim, pois não sendo feliz e triste como naturalmente eu poderia ser, como eu poderia realmente entender o que é o amor? Fui feliz e triste como achei que deveria ser, e não amei. Hoje sou feliz e triste de uma forma indescritível. Sou feliz e triste pelo acaso. Sou feliz e triste como alguém que acorda pela manhã e não tem nenhum plano pela frente. Alguém que pode somente acordar – ou ficar deitado, se quiser – e continuar acordado para si mesmo e para o universo.

Hoje ouço as mesmas canções de amor que conheci antes. Mas sendo eu feliz e triste por uma estrada sem mapa, as canções, na essência, não são as mesmas. São revelações calmas e puramente sinceras, de quem faz as coisas com o livre arbítrio, ao qual somos condenados por simplesmente sermos seres sensíveis.

E o disco se repete. Minha salvação não é me livrar o ciclo de felicidade e sofrimento que faz girar a humanidade. Fazer isso seria fugir ao vazio. Sinto-me livre ao admitir a minha condição de humano. Não domino sentimentos, vivo-os. Vivo. Amo. Odeio. Sou paz e guerra em mim mesmo. Porque se eu for só (falsa) paz, minha guerra será com os outros – a história mostra isso.

Quero me perder em um céu estrelado com o peito pleno dos sentimentos que vivi e não ter medo de virar poeira estelar.

(Escrito ao som de Leonard Cohen)
05/dezembro/2010

domingo, 21 de novembro de 2010

Uma Tarde de Chuva

Uma tarde vazia. O ar denso anuncia que em breve cairá a chuva, levantando o vapor dessa terra aquecida nesses dias de tempo quente. Nuvens de quilômetros de altura, escalando para um céu cada vez mais profundo, encontram-se e fazem a atmosfera falar. Logo vem água. E a tarde segue vazia e silenciosa.

A casa é confortável e parece dormir. Sofás aconchegantes, uma sensação de paz e um rádio velho desligado. Um gato dormindo no chão, em frente a uma lareira apagada. Não há personagens, não há individualidade. Às vezes, toda história pessoal está suspensa, e só resta o que há ao redor. Sem pensamentos, sem ansiedade, sem felicidade. Nem mesmo indiferença. Não há nada exceto o instante de infinita calma e inexorabilidade no universo que agora acontece.

Corpo relaxado, atmosfera silenciosa, vento tênue e certo, que dança de acordo com o tempo da natureza. Vento relaxado, descansado, no tempo perfeito. Balança a árvore somente o suficiente pra me causar um peso no peito, de estupefação, para me lembrar que ainda estou ali. Mas logo me perco, serenamente.

As primeiras gotas, após um distante trovão. O gato esboça acordar, mas é levado mais uma vez ao transe por essa maré sossegada que começa a cair do céu. Água que escorre pela vidraça da sala. Na cozinha, o fogão desligado, com xícaras vazias e um bolo por comer, com a janela dando para um jardim ocupado somente pela natureza. Escorre a água. Limpa paredes, limpa janelas, limpa os seres. As gotas aumentam. É chuva forte. Poços de água na grama do jardim. A tarde fica mais escura. A consciência afunda em cada poça de água, que parecem profundas como o oceano pacífico.

Vem um vento, a chuva fica mais branda. A tarde fica mais clara. As janelas continuam com gotículas a escorrer. O ar é limpo. O mundo parece pronto para quem queira recomeçar. Dou conta de mim. Com tanta infinitude e profundidade, como posso simplesmente levantar e comer um bolo?Gestos automáticos tornam-se gestos tristes após momentos de tanta contemplação. Como posso tomar conta da minha própria vida? Começo a escrever de mim, a encontrar problemas novamente. Realmente, a chuva passou. Já ouço os barulhos do cotidiano.

Mas sempre volta a chover.

sábado, 3 de abril de 2010

Um dia de sol em um inverno

Em um dia de inverno eu comi uma bergamota debaixo de uma figueira, nos arredores de um sítio ao qual fomos, meus pais e eu. Ia lá pelos fins da infância, já sentindo saudade da inebriante beleza da direta natureza das coisas, que nos próximos anos aos poucos ia-se perder em questionamentos sem fim, que me fariam recordar a tarde em que comi aquela bergamota.

Tinha-se dado o almoço. Era domingo e tínhamos comido um churrasco. O sol mais dourado do que claro desses dias de inverno deixava a grama com um verde profundo, pois não batia assim tão forte como o faz no verão, de modo que podia-se olhar com muita placidez para as coisas, sem desviar os olhos. Iam na grama seres minúsculos, dos quais me recordo as formigas e os grilos, pois o que mais vi não encontrei depois, na minha educação, nomes correspondentes. Penso se não alucinei, ou se, na tentativa de tornar o mundo mais coerente e íntimo, não terminei por pensar que alucinei, deixando de considerar coisas que talvez ainda não tenham nome, mas que estão por aí. Recordo-me de fitar a grama, as flores, os gerivás e as araucárias, que ali abundavam. Hoje posso dizer que aquele céu de inverno era cor azul cobalto, o verde dos gerivás era verde-amarelado, enquanto das araucárias era verde-floresta. Porém, à época, só posso dizer que tudo aquilo era agradável, e que ir comer uma bergamota na sombra da figueira lá no alto da colina era a coisa mais inexorável que se possa imaginar, era uma coisa que ilustra a própria definição da palavra “inexorável”, de tão certo que era o ato. Se eu vier a escrever que toda essa cena, de alguma forma, dava sentido ao meu ser, saiba que não estarei sendo verdadeiro, porque um segundo vinha depois do outro, sem um porquê, sem eu precisar me certificar, pelas minhas emoções, que sou sensível e posso admirar e filosofar sobre o mundo. Apenas almocei, vi meus pais e seu casal de amigos irem sestear, olhei a natureza e me retirei para comer minha bergamota.

Lembrando-me daquele dia, fica-me na memória a imagem da figueira, que eu contemplava, escorado no seu tronco, com meus cabelos balançando com o vento que também sacudia levemente os ramos pendentes daquela árvore. Agora, aqui estou eu, o ser que viveu aquele dia, que viu aquela figueira, e que agora relembra, com suas ideias de homem adulto, tudo o que se passou naquela tarde de inverno. Termino por me perguntar: “está ainda lá aquela figueira?”. Imagino-a no alto da colina, recebendo os últimos raios de um pôr-do-sol, com uma sombra a perder-se de vista. Imagino com um olhar humano algo que nesse momento o olho não vê. Dói-me a sensação que dá de ver o vento brincar com aquelas folhas, de ver os pássaros ali se aninharem, pois fico a pensar que são tudo emoções e percepções humanas. O que há entre mim e a natureza? Entre o que sinto e o indefinido que me rodeia e no qual vivo?

Primeiro, vivia tudo com inocência e naturalidade. Após, encantava-me com os sentimentos profundos transmitidos pelo universo. Agora, desdenho minhas emoções, como inúteis diante da distância entre meu espírito e tudo o mais que há.

A figueira pode ter sido derrubada por alguém. Assim, ela certamente não estaria mais lá, todos haveríamos de concordar, pois da maldade humana ninguém dúvida. Contudo, não sendo esse o seu fim, como podemos ter a certeza de que lá está ela, derramando em todo arredor seus verdejantes ramos, quase tocando a terra de onde surgiu, como alguém querendo reencontrar suas origens? Como saber que lá cantam os pássaros aquele som que tanto encanta? Parece bobagem, e talvez seja mesmo, mas a sensação da profunda distância que as infinitas possibilidades da existência colocam entre mim e a figueira acusa que não é tanto devaneio pensar nisso. Vi-a na infância, agora vejo-a em memória, mas, eu existindo, e exisitindo a figueira, quem pode atestar sobre a verdadeira face da árvore? Se nem eu sei bem o que sou e o que penso, como posso eu definir uma figueira e uma natureza? Certamente, entre o que percebo e o universo, há tudo.

Não sei. Não sei. Não sei. Tudo é dúvida. Apenas penduro-me por um tênue galho de certeza (quando penso tê-la) a um tronco que não sei o que significa, ou mesmo se existe. Talvez todos sejamos incertos, como galhos quebrados de um tronco que nunca vimos, caindo em direção a algo que não sabemos, e vamos caindo, devagar, contemplando o que há ao redor e pensando sobre essas coisas da vida. Depois da queda, quem sabe, germinaremos, e voltaremos a quebrar e cair. Quem sabe. É tudo dúvida. Mas que seria eu se não especulasse? Se todas as possibilidades existem, por que não procurá-las? Sinto que a irrelevância e o absurdo da existência me deixam pensar sem culpa, sem regras. Deixo-me à vontade para olhar a figueira, para recordá-la, para relembrar o canto dos pássaros, sabendo que em algum ponto de tudo o que há no universo, está aquela tarde muito clara e limpa sob os ramos da figueira. Se o universo existe e me inclui, em algum lugar meus sentimentos são verdadeiros, e, diante do indefinido infinito, meus sentimentos, e o próprio universo, podem ser qualquer coisa.

“ (...) Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando (...)”

Fernando Pessoa, heterônimo Álvaro de Campos, Tabacaria